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A mostrar mensagens de março, 2013

Ode ao gato

Ode ao gato  Os animais foram  imperfeitos,  compridos de rabo, tristes  de cabeça.  Pouco a pouco se foram  compondo,  fazendo-se paisagem,  adquirindo pintas, graça, vôo.  O gato,  só o gato  apareceu completo  e orgulhoso:  nasceu completamente terminado,  anda sozinho e sabe o que quer.  O homem quer ser peixe e pássaro  a serpente quisera ter asas,  o cachorro é um leão desorientado,  o engenheiro quer ser poeta,  a mosca estuda para andorinha,  o poeta trata de imitar a mosca,  mas o gato  quer ser só gato  e todo gato é gato  do bigode ao rabo,  do pressentimento à ratazana viva,  da noite até os seus olhos de ouro.  Não há unidade  como ele,  não tem  a lua nem a flor  tal contextura:  é uma coisa só  como o sol ou o topázio,  e a elástica linha em seu contorno  firme e sutil é como  a linha da proa  de uma nave.  Os seus olhos amarelos  deixaram uma só  ranhura  para jogara as moedas da noite  Oh pequeno  imperador sem orbe,  con

Recordar o passado em Lisboa

Já estava em casa há uma semana e a rotina diária, estava a perturbá-la. Não era uma pessoa de rotinas. O seu primeiro emprego fora professora, mas passado o perturbado primeiro ano de ensino, fora como andar de bicicleta. Durante dois anos a leccionar os mesmos anos, deu por si a recitar de cor as primeiras estrofes dos Lusiadas, as falas do Auto da barca do Inferno, os recursos de estilo. Com 25 anos e toda uma vida passada nos bancos das escolas....por isso respondera aquele anúncio de Assistente de Bordo. E sim, Sara era hospedeira do ar, na verdade, chefe de cabina nas rotas de longo curso. Para ela, viajar não era problema. Sentada numa esplanada exterior, enquanto olhava as gaivotas que atacavam as batatas fritas da comida rápida que lhes lançavam, começou a relembrar como tudo começara. O caminho que a levara até ele. Aquele dia em que, estava ainda há pouco tempo a trabalhar no aeroporto, vigiava a chegada das bagagens, do último vôo da noite, e vira chegar a tripulação, a

Ansiando por partir

Depois de alimentar o gato e comer algo, decidiu sair. A casa estava muito silenciosa desde que ele partira, de súbito, naquele dia, há tanto tempo e no entanto tão pouco. Vestiu uma larga gabardina sobre a roupa, apesar de não tencionar passear na chuva persistente, e desceu os dez andares até à garagem. Ali estava o seu carro, escuro e fiel, com o seu cheiro característico e ainda um ligeiro odor a ele. Como ele gostava de o conduzir, com a sua impaciência e mudanças bruscas, os impropérios aos outros condutores que a envergonhavam. Nas suas mãos a condução era suave. Subiu a rampa íngreme da garagem e lentamente dirigiu-se ao centro comercial. Não tinha pressa, ia olhando as ruas desertas do bairro, onde, por uma vez, não se viam cães de trela levando os seus donos a passeio. Junto das finanças, uma fila de homens e mulheres idosos encostava-se ao edifício, papeis na mão, de guarda chuvas abertos, pernas inchadas e bengalas e bonés. Desta vez teria de preencher a declaração sozinha

Uma janela para o verão

Ela acordou, aturdida ainda pelos agitados sonhos, um mundo paralelo à sua vida vazia e sem alma.  Mesmo antes de abrir as persianas do quarto imerso em escuridão, previu que o cinzento a esperava lá fora, espreitando por entre as altas torres e as janelas cegas dos prédios vizinhos. A primavera fazia-se esperar, tal como um amante antigo. O seu gato saltou para a cómoda e espreitou para a rua, onde a chuva caía lentamente e num salto ágil, partiu para a casa. Os seus gritos soaram alto e ela seguiu-o, de quarto em quarto, abrindo uma a uma todas as janelas fechadas. Em todas ele espreitava, esperançoso e partia.  Em nenhuma se via o céu, o sol, o rio, as gaivotas, apenas a cidade suburbana.  Não havia uma janela para o verão.